Aprendi cedo que “o exemplo vem de cima”. Do meu ponto de vista, este princípio aplica-se a todos os aspetos da nossa vida, seja na esfera familiar (quando, no dia-a-dia, tentamos fazer o melhor na educação dos nossos filhos), seja no âmbito profissional (quando exigimos um determinado nível de performance aos nossos colaboradores ou colegas). Para além dos prismas familiar e profissional, devemos olhar para aquele princípio como algo que deveria nortear a nossa vida em sociedade, algo que fosse respeitado em todos os aspetos da nossa convivência em comunidade, enquanto cidadãos, incluindo as várias instituições que dela fazem parte.
Assumindo que vivemos num Estado de Direito, a relação dos cidadãos com o Estado tem especial importância, porquanto é fundamental que exista um equilíbrio entre ambos, nomeadamente no nível de exigência no cumprimento dos deveres de cada um. A exigência está então relacionada com “dar o exemplo”. Se queremos exigir dos outros, teremos primeiro que exigir de nós próprios, dando o exemplo aos demais.
Do meu ponto de vista, o Estado (quem o representa) tem especiais responsabilidades no equilíbrio da relação com o cidadão. Não significa isto que o cidadão deverá ser desonerado de qualquer responsabilidade. Não. Mas o Estado, enquanto entidade abstrata que representa a base da sociedade em que vivemos, pode e deve dar o exemplo.
Vem isto a propósito do processo de apresentação da Proposta de Orçamento do Estado para 2016, e mais concretamente da famosa errata. Independentemente do conteúdo da mesma, convenhamos que uma errata de 46 páginas num documento de 215 é, no mínimo, estranho. Mais estranho ainda é o facto de a errata trazer retificações a vários cálculos, previsões, taxas, e gráficos. Isto é, não estamos a falar de lapsos linguísticos, o que não deixaria de ser grave num documento oficial (lá está o princípio de “dar o exemplo”, neste caso o de escrever português corretamente), mas sim de erros fundamentais num documento de cariz económico-financeiro, e que é “só” o documento fundamental na governação do país.
Mas há mais. Após a errata, e no seguimento dos pedidos de esclarecimento da UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) e do Conselho das Finanças Públicas, o Ministério das Finanças emitiu uma “nota explicativa”. Neste documento constam retificações às contas das administrações públicas. Afinal as contas com o pessoal não estavam bem, e as contribuições e prestações sociais da administração pública estavam mal calculadas. Por exemplo, a previsão inicial de crescimento das contribuições para a Segurança Social era de 6,3%, tendo agora passado para 3,1%. Será que estamos a ser brindados com a sequela da primeira errata, tipo “Errata 2”? E ficaremos por aqui? Ninguém sabe…
Se o meu caro concidadão comete um erro de cálculo no preenchimento do seu IRS, o que acontece? É penalizado, pois claro. Durante o ano de 2015, várias empresas receberam notificações das Finanças alertando para erros cometidos no cálculo do PEC (Pagamento Especial por Conta). Não estando em causa que esses erros efetivamente existiram (nas situações que acompanhei, assim foi de facto), as empresas em causa foram penalizadas, e de uma forma desproporcionada. Partilho consigo um dos casos que me foi exposto: uma empresa cometeu um erro de cálculo do PEC, do qual resultou um valor de 27,57 euros de imposto entregue a menos ao Estado. Este erro custou à empresa 68,25 euros de multa. Pelas minhas contas, estamos a falar de uma penalização que representa cerca de 248% do montante originalmente em falta.
Parecem existir “dois pesos e duas medidas”. Ao cidadão (porventura “contribuinte” é a designação certa, tendo em conta a voracidade fiscal dos últimos anos) é exigido que nada falhe, que tudo seja escrupulosamente cumprido dentro dos prazos, que valide todas as suas faturas num portal de não funciona, que pague tudo a tempo e horas… Caso contrário é penalizado de imediato, por não ter sido exemplar. Do lado de quem exige, o princípio parece não se aplicar. Quem devia dar o exemplo, antes de exigir, parece falhar nessa missão. Comete erros, ultrapassa prazos, e nada acontece, ninguém é responsável, tudo está bem.
Imaginemos, por momentos, que o caro leitor é Diretor Geral de uma empresa. Naturalmente, a sua empresa faz um orçamento anual, sendo a responsabilidade do mesmo do Diretor Financeiro. Suponhamos que o Diretor Financeiro lhe apresentou uma primeira versão desse orçamento, o qual começou a ser analisado por si. Quando ia a meio dessa análise, o Diretor Financeiro vem ter consigo com uma nova versão do documento, contendo várias retificações à primeira versão. As justificações não são claras, mas ainda assim aceita essa segunda versão, e reinicia o seu trabalho de análise. Entretanto, passados uns dias, o Diretor Financeiro bate de novo à porta do seu gabinete, e entrega-lhe uma terceira versão do orçamento, pois afinal ainda persistiam alguns erros de cálculo. Qual a sua reação? Que medidas tomaria?
Até breve!
CEO da UWU Solutions / Consultor / Docente